Dra. Deborah Gerstenberger propõe uma nova abordagem ao Brasil colonial do século XIX

O que aconteceu enquanto supostamente nada aconteceu

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De que forma os acontecimentos políticos das regiões vizinhas do Brasil influenciaram a monarquia portuguesa na colônia brasileira? Como foi possível garantir a união do império português e a permanência da monarquia não-constitucional nestes tempos turbulentos e revolucionários, e foi João VI realmente “o  carioca mais importante de todos os tempos”? Na palestra da Dra. Deborah Gerstenberger, com o tema “Vizinhança perigosa. A América Hispânica revoltosa desde a perspetiva brasileira, 1808-1820” (em alemão: “Gefährliche Nachbarschaft. Das aufrührerische Hispanoamerika aus brasilianischer Perspektive, 1808-1820”), encontraram-se as respostas a estas questões, entre muitas outras. O evento foi organizado pelo Prof. Dr. Peter Schulze e a Elisabeth Pütz, do Centro Latino-Americano da Universidade de Colônia, e teve lugar em 17 de Janeiro de 2019. 

Não fales do Rio da Prata!

Rio de Janeiro, em junho de 1811: Juán L., farmacêutico, natural de Buenos Aires, é preso e levado para uma ilha, fora do continente. A justificação: tagarelar na sua farmácia e comentários favoráveis sobre a independência da região Rio da Prata, elogiar uma transição a um sistema que, sob nenhuma circunstância, deveria ser elogiada. Sua declaração, segundo o diretor da polícia, mostra seu espírito revolucionário, assim como sua origem: Buenos Aires. Depois de uns meses, ele pede para poder viajar ao Rio de Janeiro para poder vender a sua farmácia, organizar os seus negócios e assim migrar para Montevidéu. Após as primeiras dificuldades e atrasos, é aprovado. No entanto, logo o policial ordena para ele sair imediatamente do país. Ele tinha que ir a bordo do próximo navio que o levaria ao território espanhol, não importava o destino. 

Rio de Janeiro, em dezembro de 1811: o hispânico José E. chega a ser suspeito para a polícia, iniciando conversas sobre a família real que violam a lei e causando inquietação que poderia levar a qualquer revolução. Ele pede ao monarca uma suspensão da sua partida involuntária, para que ele pudesse resolver alguns problemas antes de sua partida involuntária, mas o diretor da polícia, como consultor de João VI, é novamente contra ele, por razões de segurança. O hispânico deveria ser enviado imediatamente para outro país, sem que ele pudesse mais uma vez se familiarizar com os habitantes da capital. Se ele aparecesse livre nas ruas, seria um escândalo.

Uma Versalhes Tropical, o contexto histórico  

Estamos em tempos da primeira crise global, por volta de 1780-1820, a França e o Reino Unido lutam pela supremacia na Europa e no mundo. Em retrospectiva, Napoleão é uma figura onipresente, por causa do impacto significativo de suas guerras no tecido europeu. Porém, D. João, o príncipe regente das alianças de Portugal, consegue escapar: em novembro de 1807, D. João transfere toda a sua corte para o Novo Mundo, junto à tesouraria e 15.000 súditos, a frota embarca para o Brasil, só umas poucas horas antes de o exército napoleônico invadir Lisboa. Assim, Portugal permanece sob o domínio do monarca, que governa remotamente e preserva sua soberania e o sistema político.  O militar fica nas mãos dos ingleses, que defendem Portugal contra as invasões francesas. O Rio de Janeiro se torna uma nova capital do império e, segundo muitos contemporâneos, Portugal se converte numa colônia da colônia. Mario de Oliveira disse que a cidade se tornava rapidamente um “Versalhes Tropical”, como menciona Gerstenberger. Em 1821 D.João, agora D.João VI, é forçado a regressar a Portugal por causa da Revolução Liberal. Ele deixa para trás seu filho Pedro como herdeiro do trono, que agora proclama a independência do Brasil, de acordo com o seu pai, em 1922, e quebra a união luso-americana com ela. Em contraste com os estados latino-americanos, o Brasil mantém a monarquia até 1889.

Gerstenberger e o conto do “carioca mais importante de todos os tempos”

Conforme Gerstenberger, as análises históricas da cultura nacional brasileira normalmente enfocam os acontecimentos chaves, ou seja, a transferência da corte em 1807-08 e a independência de 1822.  A transferência da corte constitui um marco importante da História nacional, é a origem da formação da civilização e do progresso no Brasil, da cultura nacional, que conduz à independência de 1822 como consequência lógica. Assim, mesmo o prefeito de São Paulo em 2008 chamou D. João VI “o carioca mais importante de todos os tempos”. Aqui Gerstenberger utiliza a palavra “metanarrativa” (alemão: Meistererzählung), e convida o público a investigar o contexto histórico para poder diferenciar entre o que ela chama de “narrativa” e uma possível explicação de fatos históricos. Gerstenberger pretende encontrar uma explicação alternativa e evitar o „nacionalismo metódico“, o qual, diz ela, muitas vezes tenta „forçar a história em contêineres nacionais“. Ela toma a direção da História global, assim como da História transnacional, e examina interligações, além de fronteiras políticas. Para ela, o Estado da nação não  é mais uma entidade natural, mas como um produto da interação entre as sociedades. Para a sua análise, ela corta o começo e o fim da história, apenas discutindo brevemente a transferência da corte e a independência e concentrando-se no tempo intermédio. „O que aconteceu enquanto supostamente nada aconteceu?“ O que aconteceu quando não houve grandes convulsões históricas e políticas? Ela reconhece, longe da visão cronológica e do „determinismo final“, uma época com uma própria dinâmica.

Descobertas entre antigas páginas no arquivo policial do Rio de Janeiro  

Gerstenberger encontrou informações sobre os assuntos mais determinantes para o governo nessa época entre os documentos policiais no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e nos escritos do diretor da polícia Paulo Fernandes Viana, que estava no cargo entre 1808 e 1821. A polícia foi o ator estatal mais importante nos tempos entre a transferência da corte e a independência e uma espécie de Ministério do Interior, responsáveis pelas atividades diárias dos súditos e da corte. Os registros deram uma visão geral dos desafios da polícia, desde a sua criação logo após a chegada de D. João. Gerstenberger encontrou muitas explicações e uma nova perspectiva sobre as preocupações, os planos e desenvolvimentos e as práticas da polícia, e uma explicação alternativa, transnacional, para os desenvolvimentos políticos da colônia. Gerstenberger mostra-nos fotos de antigos livros do arquivo, com danos provocados por insectos e fungos, e fala sobre casos como os de Juán L. e José E., que sugerem de alguma forma que os movimentos de independência das regiões vizinhas hispânicas são factores explicativos para o desenvolvimento da História própria do Brasil, ao contrário da crença popular no país.

“Nenhuma informação política é a melhor informação” 

As fontes mostram que uma das prioridades mais altas da polícia foi o isolamento do povo, através da detenção da troca de informações, bem como da criminalização de conversas, a censura de revistas, e da imprensa em geral. A imprensa foi limitada a uma só impressão, a Impressão Régia, que era gerida por ministros das relações exteriores e secretários da guerra e produzia um só jornal, a Gazette de Rio de Janeiro. Somente se publicava conteúdo anti-revolucionário e ideias conformes com o governo. A arte do governo consistia em ficar bem-informado mas não deixar as informações chegar ao povo, em particular as informações sobre idéias e eventos revolucionários na América hispânica. Neste situação surgiu uma rede de malha fina de vigilância e a demanda de Polícia Particular no Rio de Janeiro. Para além do monitoramento institucional daqueles, partindo de e entrando no Rio de Janeiro, pessoas foram presas por serem “imprudentes faladores”, com base em conversas informais sobre acontecimentos políticos. Entre as sentenças ficavam a pena de prisão, ou anos de exílio em Angola e acusações como “má conduta”, “falador”, “orgulhoso”, “leitor de gazetas”, ou “Suspeito de Comunicação com Franceses” eram motivo de suspeita de incitamento à rebelião.

As práticas governamentais comprovam o pânico de soberania  

Assim, os escritos mostram que, por exemplo, esses dois hispânicos José e Juan eram vistos como capazes de poder incitar à rebelião o povo com a propaganda de idéias antimonárquicas. O ato de fala dum indivíduo é visto como um grande perigo potencial, o que mostra claramente o medo extremo de movimentos revolucionários do diretor da polícia. Destacam-se os esforços para garantir a unidade do Império e o funcionamento do governo imperial. É precisamente aqui que fica claro que essa unidade, a continuação da existência da monarquia não-constitucional e do império transatlântico, então, não foram vistas como naturais, ou seguras, no Brasil. Era necessário um aparato de observação e opressão para evitar uma possível infecção do Brasil pelos abusos e desordens das regiões adjacentes da América Latina.

Nova compreensão através do método da História global

Desta forma, nos 13 anos que D. João VI residiu no Brasil, o país não estava “isolado”, nem a sua história. A América hispânica exercia uma influência: como resultado dos eventos nas perigosas regiões vizinhas, surgiu um pânico de soberania no governo brasileiro. Esse pânico teve um impacto direto nas práticas do governo na colônia: houve criminalização, censura, expulsão ou prisão, e controle sobre os indivíduos. Na verdade, no final não se concretizou a revolução temida pelo chefe de polícia Viana, não até 1889, e, de fato, não afetaram diretamente os exemplos hispânicos no curso da História do Brasil. Contudo, diz Gerstenberger, essas práticas governamentais desencadeadas pelo pânico de revoltas, talvez fomentassem o que a polícia e o monarca temiam. A censura é uma prática paradoxal, dando atenção a tópicos que devem ser mantidos em segredo. Pois, o que ocorreu como resultado de práticas de isolamento: umas tendências de homogeneização, de nacionalização e territoriais- estes são considerados um pré-requisito para o surgimento de nações.

Finalmente, a nação, e seu regime territorial, surgiu então como produto secundário acidental, ao tentar preservar o Império. Aconteceu uma cadeia de eventos e desenvolvimentos, começando com as revoluções republicanas na América Hispânica e terminando, numa liderança governamental na colônia de métodos de isolamento da população e de ideias em favor da república, conduzindo indiretamente à independência nacional como produto secundário, contrariamente à intenção do governo. 

Por via da sua própria metodologia, Gerstenberger examinou uma nova dinâmica, que dá uma nova explicação para os desenvolvimentos que resultaram na independência do Brasil.  

 


Sobre a Dra. Debora Gerstenberger

Dra. Debora Gerstenberger é professora assistente na Universidade Livre de Berlim desde 2013. É uma das principais representantes na investigação da História da América Latina. As suas principais áreas de pesquisa são os processos de globalização e relações de gênero. Suas prioridades regionais são o Brasil, o Reino de Portugal (Idade Moderna) e o Cone Sur. Suas prioridades temáticas e publicações envolvem a História global, Polícia e Estado, Técnicas de poder, História da tecnologia, e História de computação, os quais ela examina desde uma perspetiva histórica. A sua dissertação “Governamentalidade no contexto da crise global. A transferência da corte portuguesa para o Brasil” (em alemão: “Gouvernamentalität im Zeichen der globalen Krise. Der Transfer des portugiesischen Königshofs nach Brasilien”), que fornece a base para a palestra, foi publicada em 2011 e laureada com o Prêmio Atlas.

 

FLH

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